domingo, 12 de junho de 2022

As fotografias

Theodoro

 

Ele gostava de ler o jornal na mesma sequência, começando pelo obituário, depois os classificados e o que mais o detinha era a página de esportes.  Como a fila estava longa e naquele horário a rodoviária estava apinhada de gente, Theodoro fazia uma figura curiosa, no mínimo, tentando ler seu jornal em pé, no meio da multidão que lotava as plataformas de embarque, se esforçando para não ser indelicado com alguém, ao mesmo tempo em que se esforçava para manter o noticioso aberto o suficiente para que conseguisse ler.

Os ônibus encostavam em diagonal, sobrando um estreito para embarcar as bagagens no porta-malas e assim as filas se formavam na frente dos veículos, invadindo o salão interno do estabelecimento, onde estavam os guichês das empresas e algumas lojas, dois bares.

Theodoro pegava o ônibus diariamente para a capital. A mulher e os filhos ficavam e Atibaia. Ela era professora, dinâmica, respeitada pelos colegas, tida por amigos e parentes como a conselheira, pessoa de pé no chão, sempre com uma palavra de apoio ou orientação a quem quer que precisasse.

Exceção feita a ele, que era meio refratário a conselhos, dicas, opiniões. Melhor, era receptivo, desde que não contrariassem as suas convicções. Amava Maria até pelo avesso. Amor incondicional, às vezes possessivo. Não era à toa. Maria era linda, com um sorriso hipnotizante e um par de olhos esverdeados, que em certos dias estavam mais para caramelo. Mas o forte mesmo era a personalidade e inteligência. Enfim, quando Theodoro bebia uns tragos a mais, Maria tomava posse do seu coração e aí ele não parava de falar nela. Beber, aliás, com amigos ou somente aquela paradinha solitária no bar entes de chegar em casa era uma coisa da qual ele gostava muito e não abria mão.

Trabalhava muito, de sol a sol, como dizia, tudo pela mulher e os filhos, mas que o deixassem relaxar no fim do dia, por favor. Daí os problemas com Maria, que não estava para beber na mesma frequência e intensidade que ele.

Era um homem bem apessoado. Não era belo, no sentido da palavra, mas tinha um charme que cativava e a conversa fácil fluía como água de nascente. Vestia-se bem, sempre com gravata, de terno ou com um blazer combinando com a calça. Dizia que um homem que se prezasse tinha obrigação de se vestir bem, ter seus sapatos brilhando e os cabelos impecáveis. Vaidoso, usava perfumes e mantinha o penteado modelado com fixador, dividindo os cabelos de lado e penteando para traz, formava um topete discreto. Cabelos negros, sobrancelhas espessas e aparadas, raramente era visto com barba por fazer. Sabia que Maria aprovava, mas sabia também que a linha que divisava o ciúme era móvel, oscilando na dependência de coisas do qual não tinha controle. Os humores da mulher, vai entender – dizia.

O ônibus encostou e apesar dos passageiros irem se aproximando da porta que se abriria em instantes, Theodoro continuou a ler o jornal, movendo-se devagar, encostando uma mão fechada que segurava o jornal nas costas de alguém à sua frente, ou atrapalhando a passagem de outrem pelo outro lado.

Não percebeu que alguns metros atrás de si estava um homem a lhe observar.

Tinha o olhar fixo em Theodoro, como um predador, sem piscar, parecendo até sem respirar. Esse homem não desviava o olhar por nada. Até quando levou um esbarrão de um carregador da rodoviária, que vinha com uma mala enorme e um saco amarrado com uma corda encardida, tentando desviar das pessoas numa missão quase impossível de chegar ao porta-malas do coletivo, abrindo caminho como um navio quebra-gelo no ártico, forçando a mala na frente, gritando “licença aí, pessoal, que o carregador precisa trabalhar! Licença aí, por favor!”.

Quando enfim entraram no ônibus com Theodoro já acomodado com os olhos fixos no jornal, o homem que o observava passou por ele e sentou-se mais ao fundo.

Quando terminou o jornal já estava entrando em São Paulo, o que percebeu avistando a Vila Galvão. Estava ansioso com uma venda difícil que deveria ser concluída naquele dia. Havia mais de um mês que vinha tratando com o proprietário de um apartamento na avenida São Luiz, que era muito meticuloso e sistemático. Exigia mil garantias e na última hora não efetivava a venda. Já estava perdendo a paciência, mas o dono da imobiliária fazia questão que Theodoro estivesse no negócio justamente por isso, por ser um proprietário complicado. Theodoro tinha o jeito para lidar com gente assim. A compensação viria na comissão, pois o imóvel era de valor elevado, situado num dos mais valorizados na região.

Estava tenso, quase febril. A reunião seria ainda pela manhã e estava confiante.

Ao descer do ônibus não percebeu que o observador estava parado quando ele passou quase tocando seu ombro. O homem de aparência oriental, tinha a mesma altura que ele, o porte físico muito parecido também, além dos cabelos negros, bem penteados.

Theodoro passou, o outro deu uma tragada longa, fitando-o pelas costas, enquanto se afastava em passos determinados a ir encontrar seu cliente e fechar o negócio. Hoje iria comemorar com Maria e os filhos. Teria um dinheiro extra para pagar as contas atrasadas e uma linda bolsa para ela, quem sabe um casaco também.

Aliás, pensou também que uma venda dessas, pelo menos três a quatro vezes por ano não faria mal. Poderia mudar de casa, talvez comprar uma. Também um carro. As crianças adorariam passear no carro novo.

Saiu da rodoviária sonhando, quase falando consigo mesmo em voz alta, conjecturando sobre vida nova e alguns luxos.

Chegou à plataforma do metrô sorrindo, em passos apressados, enquanto em pensamento desfilava com a bela mulher e os meninos ao redor da praça da matriz com seu bólido novo, impecável e brilhante.

Kobayashi, o homem que o observava, entrou discretamente no mesmo vagão de Theodoro. Um exemplar do São Paulo Shimbun embaixo do braço, que foi aberto logo que se sentou, de modo a obstruir sua visão daquele a quem observava.

O metrô saiu quase lotado, em meio aos avisos para se respeitar a faixa amarela das plataformas, cuidados com bolsas e mochilas, atenção nas escadas rolantes, numa mistura de sons que, se alguém estivesse a ouvir com os olhos fechados, teria certeza de que estava num lugar que vivia sob a ameaça de diluir-se num caos sem utilidade ou propósito.

 


 

Maria

            O dia começava cedo para ela. Antes do marido sair do banheiro, o café dele e das crianças estava servido. A casa naquela bagunça da manhã, camas por fazer, toalhas de banho por secar, amontoadas no banheiro, a louça do jantar na pia.

            Entretanto, quando Theodoro saía do banheiro – ela percebia pelo cheiro do perfume – a mesa estava posta e a casa em ordem. Tirava o humor dela sim, ter que fazer tudo isso e ainda sair correndo para a escola, onde era professora do magistério e orientadora educacional do estabelecimento, cargos que acumulara com trabalho insano e muito estudo.

Tinha orgulho de ver os filhos bem arrumados, bonitos, bons alunos e ter suas coisas em ordem. O marido ela ia levando. Sentia raiva por ser muito sonhador, parecendo não ter um objetivo definido, fixo, determinado. Aquele jeito de levar as coisas apaixonadamente, com obstinação, quase obsessão para algo do momento em que tivesse focado ou percebido uma oportunidade para uma vida melhor e mais abastada, com mais recursos, e de um instante para outro se cansar da coisa, querer mudar de ares e propósitos numa velocidade estonteante, de tirar o fôlego, sempre a surpreendendo, não havendo espaço nem tempo para argumentos. Daí tantas mudanças, desmonte de casa aqui para remontar acolá. Hoje em São Paulo, amanhã em Minas, no outro em Curitiba, e assim foram tantas vezes que ela se cansou. Quando se mudaram para Atibaia, terra natal de Maria, ela fincou o pé: “daqui eu não saio mais”.

E assim foi. Perto de sua família, ou de quem desta sobrou, seus amigos de infância e colégio, foi reconstruindo sua identidade, que havia deixado espalhada por tantos lugares onde seu amor a levara.

Certo era que Theodoro tinha sobre ela um domínio. Aquele charme, aquela pegada, seu jeito de abraçar, seus beijos. Além disso, o fato de ser tão amoroso com os filhos também pesava naquela relação entre eles, carregada de cobranças subliminares, ciúmes contidos, críticas silenciosas.

Irritava-se com o cheiro de bebida, com a hora que chegava em casa, com a cabeça avoada com as finanças. Mas aí tinha o carinho, os presentes fora de hora que a pegavam de surpresa, que apesar de muitas vezes causarem aperto no orçamento, não deixavam de surpreender. A gangorra entre o chão duro do dia-a-dia e o voo livre.

Levava a vida com aquele sorriso lindo, dissimulando suas adversidades com uma energia invejável.

Colecionava um bom número de admiradores. Profissional competente, com um número crescente de alunos a quem formava e orientava; amiga fiel e comprometida, que não se furtava de um apoio ou opinião por nada nesse mundo, sempre rodeada por gente que se sentia bem ao seu lado.

Tentava de todas as maneiras acompanhar o desenvolvimento dos filhos, cobrando deles seus deveres e incentivando seus projetos. A molecada que circulava na sua casa a amava, sempre com aquele bom humor e atenção.

Tentava do todas as formas se ajustar dentro do orçamento apertado da família, pois Theodoro tinha um fixo pouco atrativo na imobiliária, precisando se virar para vender e ela, professora do estado, agora com mais um incremento pelo cargo de orientadora educacional, que não era muito, mas qualquer algo mais que se assomasse ao faturamento da casa, cairia como luva para pagar as muitas contas.

Apesar de saber que a vontade do marido era trabalhar em São Paulo, sob o argumento de que lá as possibilidades de ganho eram maiores que ali, ela se incomodava muito com a ausência permanente, faltando o companheiro ali para discutir as coisas do cotidiano, dos filhos, da escola deles, do trabalho dela, do trabalho dele.

Na maioria das vezes, só ficava sabendo das coisas quando já estavam estabelecidas e acontecidas. Quando já eram passado.

Reclamava com ele de todas as formas, com indiretas ou em forma de lamentação, de reclamações, ou, nas poucas vezes em que estavam sós, com belas e acaloradas discussões.

E isso lhe causava tristeza, pois se via chata, inconveniente e intrometida.

Mas graças a Deus havia todo o resto: filhos, amigos, parentes e alunos. E isso lhe tomava todo o tempo que precisava para se sentir e perceber, lá no fundo, quem deveria corrigir a rota. Estaria ali, de braços abertos, mas a vida seguia em frente.

Ele andava muito ansioso nos últimos tempos, com um tal apartamento “de cinema”, na Avenida São Luiz, pertinho da Praça Dom José Gaspar. Ela já tinha ouvido tantas vezes que decorara a história toda. Vinha falando disso havia alguns meses, como vaga possibilidade, mas entre uma quitinete aqui e um modesto apartamento ali, esse negócio foi tomando forma e agora tinha corpo, com compromisso de compra e venda na iminência de ser assinado.

Maria já tinha se desiludido tantas vezes com todas as imensas e maravilhosas oportunidades que na última hora não vingaram, que seu coração parecia ter se revestido com uma camada de gelo quando entrava nessa seara. Até evitava avançar na conversa. Proibia a si própria de fantasiar e sonhar com qualquer possibilidade que surgisse e firmara consigo um contrato de jamais se iludir com histórias que pudessem se tornar estórias no seu final.

E naqueles últimos dias a excitação de Theodoro estava tão grande que ela se preocupou. Parecia até que ele estava possuído ou coisa do gênero.

Saíra naquela manhã falando que voltaria com umas cervejas para comemorar em casa, mas fato é que voltou com a cara amarrada, irado. Chegou jogando a maleta num canto, sentando-se com uma pose de cansaço, falando sem parar num imprevisto que ocorrera, impedindo a concretização da venda.

Estava tão perto, meu Deus, falou em tom de desespero para ela.

- Vá com calma, Theodoro! Assim você passa mal. Tem uma sopa aqui, você não quer? Aí você toma um banho e descansa.

O que ele queria mesmo era uma boa dose de uísque, mas não ia abusar da sorte com a mulher. Comemoraria quando aquele comprador assinasse o contrato.

As crianças já dormiam. Só o mais velho ainda estava na aula. Estudava à noite e chegaria mais tarde, como sempre.

Entrou no único banheiro da casa e tomou seu banho bem quente, deixando a água escorrer, pedindo que ela levasse embora os maus olhados que estivessem emperrando seus negócios.

Ao sair do banheiro e abrir a porta do quarto, abriu um sorriso ao ver a mulher lendo de lado na cama, com aquela camisola rendada que o deixava louco.

Ela retribuiu o sorriso sem olhar para ele, pois tinha ciência do domínio da situação. Theodoro trancou a porta do quarto abandonando tudo que o aborrecera durante o dia.


 

As fotografias

O senhor Kobayashi ficou muito satisfeito em ouvir claramente qual poltrona Theodoro havia comprado e, mais satisfeito ficou quando viu que a poltrona ao lado dele estava vaga e teve oportunidade de sentar-se ao lado dele.

A princípio ficou calado e totalmente atento ao que ocorria fora do ônibus, deixando Theodoro com seus pensamentos, posto que sua cara estava para poucos amigos, mas contando com mais um pouco de sorte, viu que todo o mau humor do vizinho era devido a uma venda de um apartamento que já se arrastava por tempo suficiente para esgotar a paciência do monge mais experiente e evoluído.

Como Theodoro era do tipo que precisava conversar, o senhor Kobayashi teve a oportunidade de se apresentar, e, com interesse, ouvir os argumentos do homem.

A viagem de volta a Atibaia passou rápido, pois a conversa foi agradável e Theodoro saiu do ônibus satisfeito por ter conhecido um homem que também ia diariamente a São Paulo, e mais que tudo, era inteligente e educado. Haveria de melhorar, com certeza, foi o que pensou chegando em casa. Percebeu até que sua ansiedade o tinha levado direto até Maria, tirando de sua frente o costume de dar uma paradinha no bar para um conhaque.

No dia seguinte, ao chegar na plataforma de embarque, encontrou um sorridente senhor Kobayashi e juntos passaram mais uma hora conversando. Aquele era o grande dia, mais esperado que tudo.

No final da tarde, o senhor Kobayashi espreitou um exultante Theodoro, que estava no telefone a falar sobre o sucesso do negócio, fazendo declarações de amor e prometendo que agora tudo iria melhorar.

Quando desligou, Theodoro estranhou um pouco que o homem estivesse ali, pois estava atrasado em quase uma hora.

- Você estava me esperando? – perguntou ao senhor Kobayashi, que ficou meio sem graça e respondeu de chofre, que coincidentemente ele, Kobayashi, havia perdido um grande negócio e estava um pouco chateado e se Theodoro não se importasse, ele gostaria muito de comemorar o sucesso do grande amigo.

- Vamos tomar uns tragos e comer excelente comida japonesa?

Theodoro olhou para as próprias mãos, onde segurava a maleta numa e na outra uma sacola de supermercado com algumas latas de cerveja que ele havia comprado para comemorar com Maria, mesmo sabendo que ela preferia não beber.

Mas era um dia especial. Aceitou o convite e quando desembarcaram em Atibaia foram direto a um restaurante que servia excelente comida japonesa. Era quinta feira e as poucas mesas estavam quase todas ocupadas, mas surgiu uma com dois lugares e ali os recém amigos se aportaram e saíram tarde. Tarde e com as pernas trançando.

Theodoro chegou em casa procurando fazer o menor barulho possível, ainda que fosse um pouco complicado, com aquelas latas de cerveja e a maleta. Ao entrar na sala viu a luz do quarto acesa e Maria lendo. Assim que ele se mexeu na sala, ela apagou a luz sem dizer palavra.

Tomou conta dele um sentimento ambíguo de culpa e arrependimento de um lado, e de outro uma vontade de falar para ela que tinha sido somente uma comemoração com um amigo, afinal ele tinha finalmente conseguido fechar um grande negócio, talvez o maior se sua vida, então, que ela fizesse o favor de o deixar em paz.

Ficou uns dias sem avistar o senhor Kobayashi, até que numa manhã lá estava ele, mais sisudo que o normal. Parecia um pouco agitado também, o que causava estranheza.

Compraram os bilhetes juntos e foram conversando.

Numa determinada altura, Kobayashi confessa que está numa situação muito difícil e que precisa da ajuda de Theodoro.

Era muito importante que ele fosse com Kobayashi na sua casa e fizessem umas fotos. Simplesmente isso. Eram somente umas fotos e nada mais.

Algo surpreso, pensativo, Theodoro acenou um não com o indicador em riste.

Nesse momento Kobayashi chegou ao desespero, mostrando os olhos inundados e as mãos tremulas.

 

Quando Theodoro chegou em casa naquela tarde, encontrou a esposa preparando umas aulas, o que ela sempre fazia na mesa de jantar, que dividia espaço com o sofá e a televisão.

Ela ainda estava magoada com o ocorrido alguns dias antes, pois fizera um prato especial e pusera os filhos esperando para jantarem todos juntos. Uma frustração a mais para os meninos e para ela.

Ele chegou, foi ao banheiro e retornou à sala. O filho mais velho estava assistindo tevê, Maria entretida com a matéria que apresentaria no dia seguinte. Os mais novo no tapete, brincando com carrinhos e bonecos.

Maria percebeu que ele estava diferente. Tinha algo ali que não se encaixava. Esperou. Ele não era de aguentar muito tempo sem falar.

- Aconteceu uma coisa estranha comigo hoje. Sabe aquele sujeito que conheci no ônibus pra São Paulo? Então...

Maria passou de uma atitude algo indiferente para uma feição séria, os olhos esverdeados fixos em Theodoro, sentindo dominá-la uma sensação de intensa aflição e medo, conforme a história progrediu.

O filho mais velho, também foi ficando assustado, tanto pela história, quanto pela atitude da mãe.

E Theodoro foi ficando constrangido, percebendo a gravidade de suas palavras, como se só agora os fatos a ela ligados estivessem ganhando significado naquele momento e não antes, quando aconteceram. Mas era artista em dissimular, e manteve uma atitude algo zombeteira, como se estivesse testando a audiência.

Ao perceber o desespero de Kobayashi, ficou muito preocupado, pedindo-lhe que se acalmasse, que sim ele faria as fotos para o amigo. Quando chegaram em Atibaia, foram direto à casa de Kobayashi, que ficava numa rua tranquila a algumas quadras da estação rodoviária.

Lá chegando, uma casa modesta, antiga, dessas com um jardim minúsculo e um alpendre idem, a porta de madeira com verniz desgastado. Sentiu que a casa devia ficar fechada por muito tempo, pois cheirava a mofo. Móveis antigos, envelhecidos, uma pequena mesa de fórmica com quatro cadeiras, sendo que numa delas Theodoro se sentou. Ainda viu o guarda-louças, combinando com a mesa e as cadeiras. Neste, uma prateleira abaixo das portas superiores, envidraçada, que abrigava alguns copos que um dia foram potes de geleia. Um pequeno vaso sem flores sobre o tampo.

Kobayashi lhe pediu que ficasse tranquilo; acabaria logo.

Então ele amarrou as mãos de Theodoro por trás da cadeira, assim como seus pés. Amarrou com firmeza, sem apertar os punhos ou os tornozelos, mas sentiu que seria impossível soltar-se, caso quisesse.

Rindo nervosamente, Theodoro perguntou o que era aquilo, o que estava acontecendo. Um Kobayashi bem mais à vontade e desenvolto, falou sorrindo que estava tudo ótimo e que já iria acabar. Só faltava colocar a venda nos olhos.

Ter os olhos vendados foi a parte mais fácil, talvez, pois naquela altura dos acontecimentos, nada haveria a ser feito.

- COMO ASSIM, THEODORO??? COMO NADA A SER FEITO???  - Maria gritou, quase estapeando a mesa, e só não o fez pelas crianças, como se o grito já não as tivesse assustado.

Com os ombros encolhidos e a voz algo hesitante, apesar dele já não querer continuar, forçou-se a continuar. Tinha começado, agora era tarde.

- Daí eu ouvi o clique da máquina algumas vezes, na minha frente, nos lados, atrás. Feito isso, ele destampou meus olhos, me soltou da cadeira e eu vim embora.

Maria enlouqueceu. Não conseguia aceitar que o marido tivesse um comportamento como aquele. Um sujeito briguento, que já surrara gente por ciúmes, que já brigara tantas vezes quando jogava futebol de várzea, diante de uma situação totalmente estranha e sem fundamento como aquela, tivesse uma atitude tão passiva quanto aquela que ele próprio estava narrando.

Chamou Theodoro no quarto. Ele foi, com uma atitude defensiva, querendo se justificar.

- Theodoro, explica isso para mim. Está muito esquisito. O que esse sujeito está querendo, fala, Theodoro, por favor? Tem mais alguma coisa?

- Que é isso, Maria? Não tem nada de mais. Eu só queria ver onde ele ia chegar.

- Theodoro, pelo amor de Deus me ouça: isso não está certo, não tem cabimento. E você ainda concordar com isso. Nossa, eu não sei o que pensar.

- O que você quer que eu faça? Que eu vá lá e dê uma surra nele?

Dormiram sem trocar palavra.

No dia seguinte ele se levantou mais cedo e foi para São Paulo sem tomar seu café. Na rodoviária não avistou Kobayashi e agora já não sabia se o encontraria novamente.

Passou o dia com essa nova expectativa, a par do fato de estar aguardando feliz que o cheque da comissão do apartamento fosse compensado na sua conta bancária. Fez planos, organizou números, conferiu tudo que ficaria pago, respirou fundo, com ar realizado.

No Terminal do Tietê avistou Kobayashi na fila do guichê:

- Oi, Kobayashi. Preciso pegar aquele filme com você.

- Ah, pois não. Mas é que está “no foto” pra revelar. Kobayashi pegar amanhã, né? – Estava meio sem jeito, mas solícito.

- Certo. Amanhã então.

Sentaram-se distantes um do outro. Não trocaram olhares ou sorrisos, como acontecia anteriormente à sessão de fotos.

Em casa, quando chegou, sua atitude foi a mesma, sem conversa, exceção feita às contas que havia feito, falando de tudo que estaria resolvido e o que achava que poderiam fazer no futuro. Maria estava satisfeita. Nada sobre o dia anterior, como se tivessem esquecido os fatos.

Teve uma noite agitada, sem conseguir dormir um sono reparador. Acordou suado e indisposto. A caminho da rodoviária pensou se encontraria o homem com as fotos e concluiu que não, pois chegaram quando o comércio já estava com as portas fechadas.

Passou o dia com a sensação de lentidão, como se a Terra estivesse girando mais devagar, só para atrasar os relógios.

No fim do expediente, rumou para sua condução de todo dia e não avistou que esperava ver. Ele não tinha ido trabalhar? Como assim? Viajou incomodado, planejando ir à casa do homem quando lá chegasse.

Ao descer do ônibus teve uma surpresa: o senhor Kobayashi o estava esperando quase que junto à porta do ônibus, com um sorriso discreto, olhando para baixo.

Retirou um envelope do bolso e entregou a Theodoro, que o pegou e colocou no próprio bolso do paletó. Agradeceu e saiu em direção à sua casa.

No caminho, parou num bar e pediu uma cerveja gelada, sentando-se junto ao balcão. Deu um gole farto, sentindo a espuma descer de forma refrescante, trazendo um alívio instantâneo.

Acendeu um cigarro e abriu o envelope que estava no bolso.

Assim que observou as fotos, uma mistura de excitação e medo percorreram seu corpo inteiro, como se tivessem começado no peito e se espalhassem para a cabeça, braços e pernas. Tomou outro gole, tragou o cigarro sem tirar os olhos daquele homem sentado e amarrado numa cadeira, de olhos vendados, com a cabeça envergada para a frente.

Não conseguia se reconhecer ali. Não era ele, era outro, pensou, apesar de tudo dizer que era ele próprio: os cabelos, a roupa, o perfil do nariz parcialmente coberto pela venda. Ficou surpreso com esse não reconhecimento. Formidável, pensou. Não parecia ser ele, mas sabia que era. Formidável, falou em voz alta, sorrindo ao olhar para o balconista que o fitava com olhar indiferente.

Chegou em casa com seu jeito zombeteiro de sempre, e com um sorriso discreto, de canto de boca, ficou observando a mulher e os filhos olhando as fotos.

Eram tão estranhas, com um quê de absurdo e inacreditável.

Perguntaram sobre o filme. Perguntaram se o homem que fizera as fotos ainda estava por aí.

Ele riu quando perguntaram. "Que importa o filme?" - indagou, dando de ombros.

E riu sempre que contou sobre isso aos netos e amigos, prestando atenção na reação das pessoas, parecendo se divertir com isso, ou seja, com cada atitude de quem ouvia.

Guardou aqueles registros estranhos, sem nexo, de algo que permaneceu inexplicável para sempre. Carregava como um troféu do absurdo, um prêmio a uma ousadia incontestável.

Encontrava Kobayashi diariamente na rodoviária ou no ônibus, mas jamais voltaram a se falar. Theodoro evitava Kobayashi e este sempre tentava algum contato visual, com um sorriso pronto a ser disparado, caso Theodoro cedesse.

Chegaram a ficar em assentos quase vizinhos, mas o silêncio imposto por Theodoro prevaleceu todas as vezes.

E em todas as vezes Kobayashi sorria tristonhamente, como que a pedir perdão.

  

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Presente de aniversário

     Ele lembrou da mulher falando uma, duas vezes, sobre o caminho, que deveria seguir pela avenida e virar em tal rua à esquerda, seguir reto até não sei onde. “ e veja se não entre à direita, pelo amor, hein!”

    De verdade mesmo, sinceramente, ele ficava até atordoado, de tanto que ela falava sobre isso, sobre o caminho que era perigoso, para tomar cuidado com aquele lugar horrível. Que fosse e voltasse logo, “pelo amor de Deus”.

    Fez um discretíssimo movimento com um dos cantos da boca, num mini, super mini simulacro de sorriso irônico, tomou fôlego e baixou o vidro, num esforço tamanho, imaginando se seria capaz de continuar apertando o botão até o vidro baixar completamente.

    - Boa tarde, senhor! – falou mansa e cordialmente o rapaz de bermuda, chinelo de vão de dedo e uma camiseta enorme dos Lakers, parecendo nova de tão reluzente., ao se aproximar do carro, bem próximo do motorista, como se fosse lhe falar ao ouvido.

    - Boa tarde... – som meio surdo, a voz difícil de sair, enquanto olhava para o volante fixamente, mas o campo visual lhe permitindo perceber o enorme fuzil nas mãos do seu interlocutor. Percebia também o amplo sorriso, como que assinando abaixo da voz suave.

    - Posso saber aonde o senhor vai, por favor?

    Teve vontade de chorar, como uma criancinha. Sentiu um frio na barriga, achando que fosse sujar as calças ali mesmo, dentro do carro.

    Agora já podia contar mais uns cinco homens no seu campo de visão, além de uma escopeta e outro fuzil. Eram dez olhos fixos nele, todos aguardando uma resposta.

    A rua fora se estreitando. De uma rua apertada para trânsito de duas mãos, com um ou outro carro estacionado, passou a uma só pista, às vezes com um carro velho estacionado sobre a calçada precária, lixo pelas guias, não um exagero, mas sujo. Gambiarras para todo lado, formando emaranhados sem solução, pendurados nos postes, cruzando as ruelas. Aqui e ali vizinhos conversando com as cadeiras na via, apoiando os pés nas calçadas.

    No ponto em que fora parado, formava-se um largo, como se a viela tivesse tomado um fôlego. Um tanque de lavar roupas, um varal, uma bicicleta velha, uma moto de pequena cilindrada, com um pequeno baú na garupa.

    Agora pensava na mulher como algo distante e imaginário – “será que ela existe mesmo? Será que ela falou comigo mesmo? Será...”

    Toc-toc – ouviu o som metálico do cano da arma bater suavemente no vidro duas vezes, levando um susto, ainda que tenha sido quase imperceptível a reação.

    Olhou para o rapaz, sem largar o volante:

    - Desculpe! Estou indo levar um presente de aniversário para a minha afilhada. – Ao ouvir a sua voz, sentiu-se o ser mais desprezível do mundo. Como alguém iria acreditar numa besteira dessas? Como?         Viu o rapaz erguer as sobrancelhas e olhar para o lado, na direção de um homem que ocupava uma cadeira próximo a uma porta aberta, que abria para a calçada, e este também tinha os olhos fixos em si. Manipulava alguma coisa nas mãos, miúda, como um cigarro de palha, talvez.

    - Presente de aniversário?

    - Isso, amanhã vai ser aniversário dela, mas eu e minha mulher não vamos poder ir lá, então eu estou indo levar.

    - Sei – olhava para o motorista e para o homem sentado na calçada, uns nove, dez metros adiante da cena – e onde está o presente, senhor? Só fale. Continue assim como está.

    - No banco de trás.

    - Posso ver, por favor?

    Imediatamente destravou a porta, o rapaz abriu, pegou o pacote embrulhado para presente nas mãos, deu uma leve balançada, colocou de volta, fechou a porta do automóvel. Todos os olhares convergiam para ele, podia sentir todos, como setas cutucando sua pele.

    Pensou na mulher novamente. Pensou nos filhos. Não havia pensado nela es até o momento, como se estivesse adiando seus momentos finais. O frio na barriga se transformara em cólica e agora também estava nauseado. Um fio gelado de suor desceu pela nuca. O terror inicial parecia ter se atenuado, sendo substituído por uma sensação de frio e indiferença, fazendo com que o mundo lhe parecesse mais distante, inatingível.

    Ainda lembrou do trabalho, da areia na praia queimando seus pés, do cachorro-quente na frente do escritório, de sua filha mais velha fazendo um penteado especial no seu cabelo, quando chegava cansado em casa e ela vinha com posses e direitos sobre sua cabeça, do alto de sua tenra idade, ou então de seu filho querendo lhe explicar porque os tubarões eram importantes para o equilíbrio da natureza.

    - Senhor?

    Sem conseguir responder, ele somente olhou para o dono do fuzil, com os olhos algo vidrados, a boca entreaberta, as mãos quase desabando do volante.

    - Qual é o endereço da sua afilhada?

    Ele não entendeu de pronto. Achou que estivessem de gozação com ele, soltando um som súbito, meio soluço, meio risada.

    - Endereço – conseguiu falar – o endereço da minha... ah, está aqui no aplicativo – e apontando o celular que estava preso ao suporte no painel, leu o destino gravado.

    - Muito bem. Agora o senhor vai embora, devagar, com os vidro abaixado, sempre em frente, certo? Sempre em frente! Não para em lugar nenhum. Não fala com ninguém. Só vai embora. E não volta mais, ok?

    Ele não percebeu de pronto a ordem que lhe foi dada. Ainda ficou ali, olhando para os lados. Aqueles rostos olhando para ele, inexpressivos, sem esperança, sem surpresas.

    Pensou que seria morto pelas costas, que o seu carro seria transformado numa peneira e sua família jamais saberia onde ele fora parar, afinal.

    Engatou a marcha e saiu lentamente. As pernas tremiam muito e as mãos molhadas pareciam não conseguir segurar a direção com firmeza.

- ABAIXA OS VIDRO PORRA!!

    Ouviu o grito como um tapa nos ouvidos. Fora a única coisa rude que lhe falaram desde que parou o carro e não parecia ter sido a voz do rapaz gentil, mas merecera a bronca, pensou.

    Conforme foi ganhando distância, o pensamento de morte foi perdendo para o pensamento de não morte e foi dominado por imensa vontade de chorar e gritar, mas conteve o quanto pode, deixando escapar lágrimas abundantes, e soluços também.

    Chegou a uma avenida e aterrorizou-se ao perceber que não sabia que rumo tomar. Se fosse para o lado errado, poderia ser morto pelos ocupantes daquela moto lá do beco, que o estava acompanhando.

    Estava tudo bem. A avenida era conhecida. Era quela que a sua mulher havia recomendado para não sair pela lateral como ele fizera.

    A confiança cresceu um pouco mais.

    Ao chegar ao endereço para entregar o presente, encostou junto ao meio-fio e desligou o carro e a moto com o baú na garupa, ocupada por dois homens, passou lentamente por ele, fez meia volta e desapareceu do seu campo de visão.

    Tomou um susto com o celular tocando, mas deu um riso largo ao ver a foto da esposa na tela do aparelho. Atendeu dando risada. Como há muito não fazia.

domingo, 28 de fevereiro de 2021

A quem importa?

 

­­Para sentir o ar fresco entrar, precisou abrir a janela e aí já veio logo o pedágio: barulho. Toda vez que fazia isso de abrir a janela tinha o mesmo e exato pensamento, de como o barulho perene e de mil origens permanecia indelével e inquestionável.

            Absoluto e tirano, porque muitas vezes, mesmo com a janela cerrada ele percutia os ouvidos como um martelinho maligno, que penetrava as orelhas e ia corroendo os tímpanos. Sabia que estava mais sensível, mas era impossível não contabilizar.

            Lixadeira, motocicleta, serra elétrica, caminhão de lixo, caminhão dando marcha a ré, as vozes animadas do fim de expediente, enlevadas pela cerveja. O vai-e-vem dos trens um pouco mais adiante, as sirenes, umas da polícia, outras de ambulâncias ou bombeiros, um casal brigando, uma criança chorando, latidos, martelos na oficina se aplicando em fazer o serviço, as risadas dos garotos do lava-rápido. Nas madrugadas, quando o silêncio pensava em ter vez, havia a conversa dos vigias do condomínio em frente, moradores de rua discutindo, gatos executando o ritual de acasalamento. Um motoqueiro mais apressado, buzinando loucamente, como a temer que alguém pulasse na sua frente, apesar da rua deserta. O ônibus, que parecendo se empolgar com a rua vazia passava a toda velocidade sobre o asfalto irregular, fazendo com que pneus e molejos iniciassem um festival de batuques desordenados, alucinados.

Sem falar num caminhão mais antigo, com turbo, que o motorista acelerava ao máximo antes de trocar a marcha e, ao pisar na embreagem, o quase apito do turbo parecia berrar de alegria. Não raro, um bebê começava a chorar a seguir, protestando por ser acordado daquela maneira.

Desesperançado, só fazia fechar a janela, a porta do banheiro, colocava-se na cama com a cabeça sob o travesseiro, na esperança que conseguisse apartar o mundo lá fora, mas este penetrava sorrateiramente pelos tecidos e o chamava de volta.

O sono viria como todo dia, com a fadiga, quando parecia apagar do mundo os ruídos insistentes.

Pegou um iogurte na geladeira e se sentou no sofá, com os olhos vidrados pelo cansaço, ainda sentindo o cheiro de vomito que parecia ter-lhe impregnado as narinas.

Verdade que depois disso o apetite voltara de uma forma voraz, mas por cautela ia começar com o iogurte somente. Estava ainda sob o efeito daquele momento desagradável, ou momentos; momentos desagradáveis que foram se sucedendo até vomitar.

O cansaço intenso tirava o freio de suas emoções, sabia, assim como sabia que não tinha escolha, então era só encarar a jornada, tentando manter o pensamento fixo na hora da saída. Sessenta, cinquenta e cinco, quarenta e oito, até que seriam minutos e pronto. Mas até chegar aí, a coisa evoluía de uma forma autônoma e   incontrolável.

A maioria das situações era conhecida, não só a ele, mas a toda a equipe. entretanto agora havia as mortes. Essas eram a grande novidade. Uma terrível novidade. Começaram a ser tantas, que ele se perguntava, atônito, de onde vinha tanta gente para morrer ali naquela UTI. Em alguns momentos havia três, quatro paradas cardíacas ao mesmo tempo. A equipe, atônita, batia cabeça. Primeiro porque muitos pacientes graves, parando ao mesmo tempo e, segundo, muitos recém formados. Muitos, a maioria. Médicos e enfermeiros recém-saídos da faculdade que só haviam manipulado bonecos. Todos desesperados, querendo salvar vidas, e a morte como que a rir de todos, sentada em algum ponto do corredor, fazendo troça e batendo com as mãos nos joelhos, sacudindo a cabeça de forma zombeteira, cínica. Mortes numa sucessão macabra, sem dar tempo de nada.

O necrotério com cadáveres amontoados, esperando pelos caixões que não chegavam. Muitos permaneciam horas nos leitos das enfermarias, porque as macas estavam ocupadas com defuntos anteriores. Lá fora, no pronto socorro, os pacientes graves aguardando que a fila andasse para poderem entrar.

E eles morrendo e morrendo.

Foi um mês assim, ou dois, não se lembrava bem, mas com certeza não seriam mais que três. O tempo andava meio misturado na sua cabeça. Dia e noite. Ontem e amanhã. Semana que vem. Mas morriam muitos. E as equipes, atônitas, acudiam da melhor forma. Até que um dia pararam de morrer assim, de enxurrada.

Continuaram morrendo, bastante ainda, mas menos. Tanto que o mundo foi se liberando para se movimentar mais. As pessoas começaram a se desinibir para sair de casa, as ruas começaram a encher de gente novamente.

Afinal, sem voltasse a morrer tanta gente assim de novo, tudo seria fechado.

A conta que ele fazia não fechava, pois ainda morriam muito. De cada dez que entravam ali, saíam vivos de dois a quatro, mas parecia ter ficado bom para quem estava lá fora, longe daquele burburinho das dores e tragédias. As notícias pareciam ter perdido a força, a graça. Afinal, a vida teria que continuar em algum momento, e já não era sem tempo que isso acontecesse.

Ali dentro da UTI, os barulhos eram outros, mas também intensos, ininterruptos, incessantes, persistentes, insistentes: alarmes dos ventiladores mecânicos, das bombas de infusão, dos aparelhos de hemodiálise, dos termômetros (esses bem mais baixos, quase inaudíveis), da rede de gases, dos monitores de pressão arterial, os telefones dos postos de enfermagem, as campainhas de entregas de materiais e medicamentos, das tosses, dos gemidos de dor, de solidão, de saudade dos filhos, dos pais, do marido, dos netos; os xingamentos ou verborragia dos que voltavam de longos períodos de sedação e eram acometidos por delírio. As risadas e conversas acaloradas dos integrantes das equipes, que, afinal ninguém era de ferro e haveria que se extravasar em algum momento. De fora, as sirenes que não paravam, lembravam a todos que a peste grassava com a intensidade de sempre, ainda que com pequenas variações.

Naquele dia lhe acontecera algo novo. Desde que acordara no meio da madrugada para atender uma intercorrência e não dormira mais, sentira seu corpo diferente, com uma tontura rondando de leve, como que a esperar o momento de dar-lhe o bote, fazendo com que desmaiasse e a boca meio amarga, um enjoo de fundo. E foi convivendo com isso durante o dia até que o vomito veio súbito e abundante.

Estava no quarto do homem de quarenta anos que precisava ser entubado e vinha lutando contra essa conduta desde que chegara ao leito, mas com o quadro piorando ele precisou intervir e conversou abertamente com o paciente: se ele não fosse entubado iria morrer com falta de ar. Com ar resignado e olhos lacrimejando, o paciente capitulou, mas pediu que antes se fizesse uma chamada de vídeo para a esposa, pois ele queira se despedir.

Nesse momento precisou sair correndo do quarto. Uma imensa vontade de cair no choro se apossou dele, mas se recusou a deixar transparecer, ou pelo menos tentou, pois seria o médico que entubar aquela pessoa e não poderia deixar passar essa imagem de vacilo e fraqueza. Que chorasse após o homem estar anestesiado, jamais naqueles momentos que antecederiam o procedimento.

Saiu pelo corredor e ao abrir a porta de emergência para a escada de incêndio, a golfada queimou sua garganta e ele lavou o chão com o vômito.

Alguém da enfermagem veio atrás e o socorreu, sentando-o no primeiro degrau e correu buscar uma toalha, retornando também com um copo d`água.

Descobriu que era fraco, mas não se culpou por isso. Sentiu-se vulnerável de um jeito que não havia experimentado antes. Sabia que era um limite. Capitulou.

Suportou as filas de cadáveres, a falta de conhecimento frente àquele terror, a falta de recursos, a falta de humanidade daqueles que faziam questão de dizer que aquela doença não passava de uma gripe, que não era nada demais. Suportava até ver seus colegas receitando fórmulas milagrosas e remédios de verminose para curar aquilo que não tinha cura, mas descobrira seu próprio ponto fraco: a despedida da família antes de ser entubado. Uma gota d’água naquele oceano represado. Repentinamente, seu corpo dava sinal de vida.

O gosto do bolo alimentar na sua boca, misturado ao ácido do estomago, que lhe fez também espirrar, queimando suas as narinas como fogo, os olhos lacrimejando; essa sensação, esse estado, isso representava talvez o que vinha sentindo por tudo. O gosto daquela verdade.

Uma catarse e uma revelação, de como o mundo cruel poderia ficar muito pior que imaginava.

O vírus como ferramenta da crueldade e da intolerância.

Nada a fazer. Levantou-se e foi colocar aquele tubo na garganta daquele homem. Ainda pensou quantos já tinham sido. Quantos haveriam de ser. Que importava, afinal? A quem importava, afinal?